3-Remorso (Parte II)
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-Ai!
Alyson deu um berro, e se contorceu mais uma vez.
-Você pode ficar quietinha por um minuto! -Pediu Crós, enquanto abaixava a cabeça da garota pela décima vez seguida.
Eles estavam no hidroavião, tentando dar um jeito no machucado que se abria na cabeça da garota. Sacha e Cloe tinham saído para comprar umas lembranças da cidade. Ken estava sentado confortavelmente no banco, observando as tentativas de cura do feiticeiro. Crós havia mandado Alyson sentar num banco e abaixar a cabeça, E tinha entrado no vão entre as costas desse banco e o detrás. Tinha pegado no bolso uma erva que disse se chamar Alancia, e um tempo depois colocou por cima do ferimento. E começou a dizer um feitiço, algo como:
Osso quebrado, ordeno que se junte;
Veia torcida, ordeno que se desenrole;
Ferida aberta, ordeno que se feche;
Dor insuportável, ordeno que acabe;
Corpo cansado, ordeno que se cure.
Infelizmente, toda vez que ele chegava na segunda frase a jovem sentia dor e se mexia, quebrando a concentração do mago e fazendo ele repetir tudo outra vez.
-Seu insensível, isso dói, ta? Já viu o tamanho do rombo que aquele desgraçado me fez?
-Estou tentando te ajudar.
-Poderia deixar eu me curar sozinha. Tenho uma recuperação física muito rápida e defesas muito fortes...
-Uma ajuda a mais não vai fazer mal algum. E acha que essa defesa pessoal é muito boa? Conheci gente igual a você que pegou uma infecção séria por causa de avantesmas e sabe onde estão? Sete palmos abaixo da terra. Não quer morrer de novo, quer?
-Não, obrigada, uma flechada no coração já é suficiente. -Replicou Alyson, parando de se mover por alguns segundos. Logo outro grito de dor e nova interrupção forçaram Crós a parar. Uma onda de indignação passou pelo seu rosto descoberto.
-Pode parar de se mexer? -questionou ele, sem a mínima paciência.
-Não posso evitar. São atos-reflexos. -Desculpou-se ela.
-Eu adoraria te ajudar. Mesmo, mas se continuar se contorcendo eu nunca vou chegar ao final do feitiço. Capite? Tente relaxar!
Ela fechou os olhos e abaixou a cabeça outra vez. De repente, aquela voz suave entrou no seu pensamento, novamente. E começou a falar:
“Já se resolveu?”.
“Estou confusa. Ele mentiu para mim. Pode me entender?”.
“Humanos mentem”.
“Mas ele errou. E feio, dessa vez”.
“Humanos erram”.
“Quero perdoar, mas ao mesmo tempo não quero. Ele parece perfeito para mim às vezes, e em outras parece não ter nada a ver.”
“Humanos são imperfeitos”.
“Sei disso”.
“Mas esquece”.
“Você tem razão. Posso te chamar de você?”.
“Pode me chamar do que quiser, por enquanto”.
“O que eu devo fazer? Estou tão confusa”.
“O que achar certo”.
“Não sei”.
“Pense”.
“Acho que ele é o certo”.
“Você está no caminho correto... O caminho do seu coração”.
“E se ele não for o certo?”.
“Saberá o que fazer. Mas quando os humanos aprendem a olhar para dentro de si mesmos, quando ouvem seu coração, aprendem a seguir seu caminho, a evoluir, a ter o poder de mudar seu destino. Enquanto seguir esse caminho, nada, nem ninguém, poderá o impedir”.
“Um dia vou chegar a esse nível?”.
“Um dia”.
“Estou preocupada. Não sei porque. Talvez seja o fato de eu ter que deter uma imortal. Ela é uma assassina. Tem sangue frio, poder, vida eterna. Tem muitas coisas que eu não tenho. Como posso vencer se sou tão inferior?”.
“Comece se perguntando o que você tem que ela não pode ter. Mas não é isso o que você procura”.
“Como assim?”.
“Não é com isso que você está preocupada”.
“Eu não sei. Ainda a pouco eu pensei ter ouvido um barulho de chuva, de berros horríveis, por dentro de uma tempestade. E uma tristeza muito grande tomou conta de mim”.
“Crós também pode sentir. Fique do lado dele. Ele entende o porquê, pois nasceu em Diamante, e Diamante é parte dele. Quando Diamante ou seus Deuses sofrem, os fiéis a eles podem sentir”.
“O que está havendo?”.
“A Deusa da água está chorando”.
A voz calou-se, e Alyson entendeu que ela tinha se recolhido às profundezas de sua mente. Um último conselho passou como um lampejo em sua mente.
“Pode abrir os olhos. O feiticeiro terminou a magia agora”.
Ela reabriu os olhos, e sentiu como se tivesse dormido uma noite inteira. Sua cabeça não doía mais. Não havia mais sangue... Não havia mais nada. Ela passou a mão delicadamente pela cabeça, e Crós disse o que ela se recusava a acreditar: -Não há mais ferimento. Ele sumiu... Completamente.
Ken tentava esconder a surpresa, mas não era muito eficiente nisso. A garota virou-se imediatamente, abrindo um sorriso radiante e deu um beijo na testa do mago. Esse ficou meio pasmo por alguns momentos, depois deixando um sorriso cintilar pelo seu rosto. Passou sua mão pelos cabelos dela, bagunçando-os mais ainda.
-Você vai me ensinar, não é?
-O quê?
-Esse feitiço. Por favor. -Pediu Alyson, piscando os olhos com carinha de anjo.
-É muito complicado...
-Eu me esforço. Crós, por favor...
Ele pareceu pensar por um minuto. -Bom, levando em consideração que você é atrapalhada e que vive se machucando... Está bem.
-Sério? -Perguntaram Alyson e Ken juntos. Ela com admiração, ele chocado.
-Sério. E caso consiga utilizá-lo com perfeição, eu ensino os outros. Você vai ser, como eu posso dizer? Minha aprendiz.
-Jura? -Ela questionou, enquanto o rapaz sussurrava para si mesmo: -Socorro.
-Juro. Palavra de feiticeiro. Afinal, Iris sempre me disse para procurar uma cobaia para eu ensinar.
-O que você quer dizer com cobaia? -Gaguejou a jovem.
-Foi uma aposta que os outros integrantes da Equipe fizeram em mim. Aparentemente era o grupo que achava que o meu primeiro aprendiz ia se transformar em uma pessoa poderosa e importante contra...
-Contra? -Perguntou, já começando a mudar de idéia.
-Os que achavam que o meu primeiro aprendiz ia acabar em pedaços, tentando produzir uma das minhas complicadas formulas.
-Em que lado a Iris estava?
-Do meu. O lado Super-herói. E junto com ela estava o Aaron, a Dayana e o Senhor do Palácio de Granito. À minha esquerda... -E ele deu um sorriso besta. -... Ou do lado do “defunto”, estavam a Taylor, a Pandora e o Dave. Na realidade, a culpa disso tudo é do Dave.
-Senhor do Palácio de Granito? -Perguntou Ken, interessado.
Crós olhou para cima como se aquilo fosse algo que não quisesse lembrar e retrucou baixo, virando-se e saindo do hidroavião: -Isso foi há muito tempo.
Alyson o acompanhou pelo vidro dianteiro do avião e suspirou profundamente, enquanto Ken se aproximava dela. Foi recebido com um tapa na cabeça.
-Hei... Por que fez isso? -Ele resmungou, esfregando o local atingido.
-Você tinha que perguntar? -Acusou ela, cruzando os braços. -Não está vendo que eu estava tentando animar ele?
-Parecia estar tentando convencer. -Disse o rapaz. -Animar por quê?
-Você não acreditaria em mim. -Ela alegou, sentando num dos bancos. Ele se sentou ao seu lado.
-Tente explicar... E eu prometo que tento entender.
-Ta. Mas é complicado. E estranho.
-Por favor, eu tive um mestre que podia viajar pelos três mundos e você vem me dizer que algo é estranho demais?
-Tem uma voz na minha cabeça, Ken. Eu estava conversando com ela enquanto Crós fazia o feitiço... Por isso que eu “sosseguei”.
-Sério? Parecia que você tinha apagado.
-Ele pediu para eu relaxar. Essa coisa... Seja lá o que for, está tentando me ajudar. E ela disse que Crós estava triste. Estava sofrendo por causa do que estava acontecendo em Diamante.
-O que está havendo?
-Eu fiz a mesma pergunta.
-E o que ela respondeu?
-Que a Deusa da água está chorando.
-Meu mestre disse algo sobre isso uma vez.
-O que ele disse?
-Que para a Deusa da água chorar precisa de um motivo muito forte. E que quando ela chora, o que é raro, mesmo o dia mais claro é imediatamente coberto por nuvens negras, e uma tempestade arrepiante se forma. E que criaturas invisíveis para pessoas com olhos comuns gritam e choram, junto com a tempestade, espalhando a dor por onde ela passa. -Contou Ken. Ela o fitou demoradamente, aparentemente amedrontada.
-Não foi apenas sobre isso que ela falou. Digo “ela” não porque é uma voz, mas porque tem um tom feminino. E eu tenho certeza que ela é uma mulher. -E dizendo isso ela fez o sinal de aspas com os dedos. E completou: -Preciso falar com você.
-Ela mandou?
-Não exatamente. Ela disse para eu seguir meu coração. E não sei ao certo o que ele está dizendo agora, mas... Preciso falar com você.
-Vai ficar com seu amiguinho romântico francês? -Perguntou ele, com um sorriso triste.
-Nem pensar! O que fez você pensar nisso?
-Ele está dando em cima de você desde que te percebeu. E por um breve momento achei ter visto algo como uma... Cumplicidade.
-Achou errado.
-Em todo o caso, preciso admitir...
-Que você não gosta de mim? Não precisa, já me jogou isso na cara horas... -Ela foi interrompida por um beijo rápido.
-Eu menti. Duas vezes.
-Me... Mentiu, é?
-Quando disse que não confiava em você... Eu estava fora de mim, não sabia o que eu estava dizendo. -Ele segurou as mãos de Alyson nas suas e continuou. -Confio a você até a minha vida, se for preciso. Mas tenho medo... De acordar um dia e descobrir que você desapareceu, de ver você morrendo outra vez e não poder fazer nada, de fazer você sofrer sem necessidade... Eu tenho medo de muitas coisas não é? Mas é porque eu te amo. Tenho pavor de perder você.
-Demonstra muito bem. -Alegou, com um sorrisinho torto. -Que engraçado...
-O que é engraçado? -Retrucou Ken.
-Também te amo.
-Posso perguntar qual é a graça nisso?
Ela deu uma risadinha: -É difícil de explicar. Às vezes, quando esperamos muito por algo... Quando queremos muito algo, parece impossível de se conseguir. Mas quando conseguimos... Sei lá, parece que é brincadeira. Frustração.
-Você está esperando algo que não vai vir. Porque eu juro pela minha alma que tudo o que eu acabei de dizer é verdade. A mais pura verdade.
-Sei que é. Confio em você. -Ela o abraçou docemente. O rapaz corou, surpreso. Ela era previsível... Pelo menos na maioria das vezes.
-Posso te fazer uma pergunta?
-Qual?
Ken abriu um sorriso de escárnio (o que significava que era alguma bobagem), e perguntou: -Sou seu namorado agora?
-Bobo.
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Crós olhou para o céu. A noite começava a descer, e as primeiras estrelas apareciam à distância. Sentiu dor. Não era uma dor física, que podia ser curada à base de feitiço ou erva. Era muito pior que uma simples dor. Algo que ele experimentava raras vezes, em ocasiões mais raras ainda: solidão, impaciência e impotência. Receio, tormento e acusação. Devia ter dado ouvidos a ela. Devia ter andado rápido. Já deveria estar em Diamante ao seu lado. Ao lado daqueles que eram a família que nunca teve. Seres estava sofrendo, e isso é alarmante. Significa que algo muito ruim estava acontecendo, algo muito ruim. E, mais cedo ou mais tarde isso afetaria seus amigos. Iris e os outros estavam com problemas, ou quase lá, e talvez ele não chegaria a tempo.
Ele cobriu o rosto com as mãos, lutando para conter as lágrimas e respirou fundo. Viu as meninas voltando para o hidroavião, enquanto pensava que não podia perder tempo. -Graças aos Deuses! -Menos isso para se preocupar. Dirigiu-se para a máquina controlando a respiração, de passos firmes. Não podia mostrar a eles fraqueza. Daria a impressão de que iriam lutar por uma causa perdida, e isso era a ultima coisa que o mago queria. Primeiro porque ele ainda tinha fé, e segundo porque o desanimo custa caro. Caro demais para se arriscar.
Mas sempre chega uma hora em que a fé começa a enfraquecer, começa a falhar. E Crós sentiria isso, mais cedo do que podia imaginar.
“Francis, venha rápido. Vou partir hoje à noite. Não há tempo. Traga as pedras”.Ele chamou em pensamento, e entrou no hidroavião, um pouco depois de Cloe e Sacha. Todos voltaram sua atenção para ele.
-Precisamos ir. -Declarou, firme, e completando: -Vou esperar Francis chegar para pegarmos as pedras mágicas e daremos no pé.
Alyson arqueou um pouquinho as sobrancelhas, se perguntando desde quando um feiticeiro dizia “daremos no pé”, mas preferiu ficar quieta. Recostou-se confortavelmente no banco e se obrigou a pensar num meio de dizer a Francis que não estava interessada nele, sem parecer convencida ou insensível.
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O imperador de Diamante estava bastante preocupado. E não era para menos. Aos seus pés, no salão principal do Palácio de Granito, Seres estava estendida, chorando desconsoladamente. O Senhor do Palácio de Granito adentrou no salão, aparentemente aflito. O manto negro que usava farfalhava a cada passo. Era um rapaz bonito, alto, de 27 anos, cabelos escuros e curtos, olhos castanho-esverdeados e pele bronzeada. Não dava para divisar o seu corpo por causa do traje, mas ele tinha um corpo escultural, musculoso na medida certa.
Nicolas fez uma reverencia. O velho imperador, de olhos claros e penetrantes, expressão afável e cabelos grisalhos fez um sinal para que o rapaz levantasse e chegasse mais perto. Os olhos dele passaram por Seres. A Deusa da água se encolheu e olhou o recém-chegado. O rosto delicado estava vermelho e um pouco inchado por causa do choro. Os olhos, azuis claros, também estavam vermelhos. Os cabelos, de tom azulado, cacheados e compridos até os ombros, estavam molhados e embaraçados. Ela vestia um vestido branco, com decote em forma de V, babados e brocados nas mangas curtas e um corte meio aberto embaixo. Era raro vê-la desse jeito, pois Seres era uma sereia, e na maioria das vezes estava dentro d’água, com as pernas transformadas em uma calda azul-turquesa e usando um top da mesma cor.
-Oi, Nicolas. -Sussurrou a Deusa, controlando o choro.
-Majestade. -Ele cumprimentou, fazendo outra reverencia, e finalmente abaixando-se ao lado da Deusa, perguntou: -O que houve, Seres? Por que está chorando?
A divindade se ajoelhou no chão e tocou com o dedo indicador uma pequena poça, que tinha se formado com suas lagrimas, começando a falar: -Ela destruiu a Cidade que eu criei com minhas próprias mãos, com meu próprio sangue. A Cidade Das Águas foi destruída, agora só existe água suja de sangue e ruínas. Só a parte norte foi poupada, e isso porque Haradja quer utilizar o castelo que foi construído lá como estadia de verão. Ela conseguiu entrar lá, não sei como, e matou a maioria dos habitantes. -Enquanto Seres falava, na poça de água salgada apareciam imagens de destruição, guerra, ruínas, pessoas sendo mortas sem poderem sequer lutar. Quando a Deusa terminou, a poça que antes era límpida e cristalina se transformara em sangue.
Seres retirou o dedo e olhou para Nicolas e para o imperador, Erom. Novamente uma sombra de angústia passou pelo seu rosto, e seus olhos embaçaram. -Eu não pude fazer nada... Não posso fazer nada. Os deuses só tem permissão de intervir quando se confrontam com outros deuses.
-Não devia ter mostrado essas cenas para nós, majestade. Vai sofrer ainda mais desse jeito. -Comentou Erom, num fio de voz.
-E não queremos que sofra. -Complementou Nicolas. -Me desculpe, a culpa foi minha. Eu era o responsável por vigiar Haradja. Eu falhei... Mais uma vez. Com vocês dois, com os outros deuses, com Iris, com todo mundo... Principalmente com os habitantes da Cidade das Águas, deixando-os a mercê de algo contra o qual não poderiam lutar.
-Não se culpe, Nicolas. Nem nós, deuses, previmos isso. Ninguém poderia. Foi um ataque surpresa, bem arquitetado. Os vigias de Soledad foram pegos numa armadilha, para que ninguém pudesse nos informar do ataque. O que podemos fazer é nos concentrarmos nas outras cidades, principalmente aqui em Cristal e em Farem, onde a maré vai bater mais forte... -Seres interrompeu-se, suspirando, e alegou: -Precisamos nos reunir com Folkes, Reidh e Hera, precisamos da garota, e precisamos avisar à Iris.
Nicolas parou para pensar por alguns momentos e bateu a mão na testa: -O teste... Ela vai tentar sabotar o teste. Quantas horas?
O imperador olhou para o grande relógio de pendulo que adornava o salão principal: -Meia noite e meia.
-Temos pouco tempo. O teste começa as oito em ponto. Imperador, preciso usar o computador principal... Se me dão licença... -Ele se curvou mais uma vez e saiu da sala, o mais rápido que o piso escorregadio deixava. Seus pés derraparam quando ele saiu do salão, rumo à sala do computador central, onde ele tinha recepção boa o suficiente para contatar Farem e Iris.
Ele ligou o computador e esperou-o carregar (o que demorava quase meia hora, pois à noite a carga de energia mandada pelo Palácio era bem maior que de dia.), rezando para que desse tempo. Se acontecesse algo com Iris ou com os outros, ele jamais se perdoaria.
O computador carregou-se completamente em exata meia hora, o que deixou o Senhor do Palácio de Granito desesperado. Mas a surpresa maior ainda estava para chegar. Nicolas descobriu, com desgosto, que a linha de comunicação com a Sede Black e todos os comunicadores estava cortada. Um presente de Haradja, e eles demorariam muito tempo para saber como ela tinha feito aquilo. Ou melhor... Sua sócia. O rapaz tentou de todos os meios possíveis estabelecer o contato, sendo frustrado em todas as suas tentativas.
Ele voltou para a sala principal, reencontrando-se com Seres e Erom: -Não consegui.
-Não conseguiu? -Questionaram os outros dois.
-As linhas de transmissão foram cortadas. Nenhum recado entra ou sai. Primeiro pensei que era só a Sede Black, mas não é. Tentei contatar guardas, vigias, sem sucesso.
-Haradja. -Murmurou Seres, levantando-se. -Alguém tem que avisá-los. Não podem estar desprevenidos contra um ataque de Haradja.
-Eu vou. -Alegou Nicolas.
-Sou mais rápida. -Contestou Seres.
-Não pode interferir, majestade. Sabe muito bem o que acontecerá se ir lá agora. Ainda mais nesse estado de espírito. Posso fazer isso. Eu fracassei uma vez, quero concertar o erro. Por favor, minha Deusa, deixe-me partir.
Seres olhou para aquele rapaz determinado e sentiu toda a sua vontade minar. Sabia o que aconteceria se interviesse. Ficaria confinada no seu elemento por quatro dias. Quatro dias era muito tempo para um reino ameaçado. Poderia ser mais útil essa intervenção em outro momento. Seres era a mais calma e racional dos cinco grandes Deuses. Ela sabia que ainda não era hora de arriscar a pele. Ainda não. Teria que confiar em Nicolas mais uma vez.
-Vá. Mas procure primeiro a Sede, e depois o Caminho da Ilusão. Se houver um ataque, pegará os dois. Com certeza ao mesmo tempo. -Disse Seres, se conformando.
-Obrigado, majestades. -Ele agradeceu, e se virou para sair do salão.
-Nicolas. -Chamou a deusa. Ele a olhou.
-Você daria um ótimo imperador.
Nicolas deu um sorriso e meneou a cabeça. Já ia se virar de novo quando Seres o confrontou novamente. -Nicolas... Tome cuidado. E boa sorte.
Ele fez outra reverencia e saiu da sala. Seres virou-se para Erom e perguntou: -Já pensou em quem vai ser seu sucessor?
-Já. Nicolas será um bom imperador. A menos, é claro, que ele não queira e que haja alguém melhor para ficar no seu lugar.
-Vou considerar isso na hora em que formos promover a sucessão. -Prometeu Seres. -Mas ainda vai demorar. Ainda está firme e forte, senhor. Ainda vai viver muitos anos. O suficiente para ver Nicolas amadurecer um pouco mais.
-Quem sabe.
-É, quem sabe.
A deusa do destino é ardilosa. Nenhum deles poderia prever o futuro que os aguardava. Nesse instante, Nicolas embainhava a sua espada e subia em sua moto. Em instantes estaria na estrada. Precisava de tempo... E essa era a única coisa que ele não tinha.
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Francis chegou na frente do hidroavião e o observou de cima a baixo. Crós saiu da maquina, junto com os outros. O olhar do rapaz caiu sobre Alyson, e um sorriso encantador brotou em seus lábios.
Kem notou, e olhou para a garota ao seu lado. Ela tentou retribuir com um sorrisinho cínico, retrucando, entre dentes: -Vai ser mais difícil do que pensei.
-Eu queria muito poder te ajudar, mas não posso. -Comentou o rapaz, carinhosamente.
-Concordo plenamente.
-O que vai dizer para ele?
-Isso é problema meu, não acha?
-Ta, não precisa ser rude. Só pega leve com ele.
-Por quê?
-Levar um fora de uma garota linda como você pode ser prejudicial. Eu ficaria muito mal.
-Sei disso. -Ela riu, enquanto via Francis se aproximar deles. Ele chegou perto de Alyson e beijou sua mão, novamente. Ken pensou em agarrá-la e lhe dar um beijo bem na frente daquele guardião sei lá do que, ou talvez gritar: “Ela é minha namorada, eu vi ela primeiro!”, e “Dá para tirar o olho da minha garota?”, mas achou que isso seria grosseria, sem falar de muito imaturo.
Alyson viu que o namorado não estava muito feliz com isso tudo e retirou a mão. Deixaria Crós resolver seus problemas e diria a ele... O que ia dizer a ele mesmo???
-Bem, Francis... Trouxe as pedras? -Crós perguntou, educadamente. O outro tirou do bolso da jaqueta uma caixinha toda ornamentada, com um dragão em alto relevo na tampa, e vários símbolos estranhos espalhados pela sua superfície. Ele abriu a caixa, com muito cuidado. Dentro dela havia quatro pedras, menores que uma bolinha de gude. Um quartzo, um topázio, um berilo e uma água-marinha. Respectivamente as pedras do ar, da terra, das asas e da água.
A jovem olhou para as pedras com admiração, mas, subitamente, declarou: -Estão faltando três.
-Creio que cabe a você achá-las. -Afirmou Francis.
-A mim? –Ela questionou, de queixo caído.
Crós mais do que depressa cortou o assunto: -Falamos nisso depois. -Por que você não estava em Veneza, afinal de contas?
-Tive problemas com os avantesmas seguidores de Haradja por lá. Resolvi despistá-los, só isso. Pena que não funcionou de nada.
-Queriam as pedras?
-Querem as pedras. E, pelo visto, a Alyson também. Estamos com um problemão. E vocês tem que sair daqui o quanto antes... A derrota pode ter sido humilhante, mas não quer dizer que eles vão deixar de voltar. Fora que já era para estarem em Diamante há essas horas...
-Muito obrigado, amigo. -Agradeceu Crós.
-Eu faço o que tenho que fazer, e só. Não precisa agradecer.
-Bem, vou ligar o hidroavião. Não demorem. -O mago replicou, dando um adeus para Francis com a mão. Alyson sentiu que a frase tinha sido para ela. Ken seguiu Crós, também dando um tchau com a mão (no caso dele, até nunca mais). Sacha tentou jogar um charminho, mas não adiantou de muita coisa. Acabou que ele só apertou a mão dela, o que a deixou frustrada. Cloe, que não queria encarar, pois se sentia desconfortável, e porque queria parecer educada, também apertou a mão dele, desviando o olhar rápido e voltando para o hidroavião junto com Sacha. Sobraram só Alyson e ele. Os dois se encararam.
-Olha, Francis... -Começou ela. -Eu gosto muito de você... Mesmo. Mas, só como um amigo. -Ela viu o rapaz “murchar”. Talvez tenha sido direta demais. Ia ter que concertar o erro. -Me desculpe por ter feito você alimentar falsas esperanças. Essa não era a minha intenção...
-Você gosta do Ken, não é?
Ela inconscientemente fez uma careta. Será que estava tão na cara assim? Sem prestar atenção, respondeu: -As vezes ele é um idiota... Mas mesmo assim não posso deixar de pensar nele.
-Acho que estou com inveja... Nunca senti isso em anos de existência. É estranho. Queria que você olhasse para mim como olha para ele.
É, tava mesmo na cara. Ela suspirou fundo. Por que estava sendo tão difícil? -Sinto muito... Mas não posso ficar com você. Não sabendo que estaria fazendo isso por compaixão... Ou amizade.
-Eu entendo. Cheguei tarde. -Ele a encarou com tristeza no olhar.
-Talvez fosse tudo diferente... -Ela parou para pensar e percebeu, que se Ken não estivesse em sua vida, seria fácil se apaixonar por aquele jeito encantador de Francis. Porém, o cupido tinha feito a sua parte, há muito tempo, e ela teria que partir o coração de alguém. Alguém que a amava demais, mesmo só a conhecendo por algumas horas. Alguém que poderia ter sido um amigo maravilhoso.
-Talvez. -Ele concordou. -Espero que seja feliz. Que tenha êxito em sua missão. Que viva o suficiente para conhecer o meu mundo. Ver como ele é em tempos de paz.
Isso era um adeus. A garota sentiu-se um monstro por um instante. Deu uma vontade enorme de chorar, de abraçá-lo, de dizer que estava tudo bem, que ele ficaria bem, que acharia uma garota que merecesse o seu amor. Uma alma gêmea, para acompanhá-lo pela vida confusa de feiticeiro.
Sentiu seus olhos encherem-se de lágrimas. Ela olhou aquele rosto e se perguntou se estava fazendo a coisa certa. Hesitava. Tomou coragem, uma coragem saída de nem se sabe onde. -Não quero que sofra por mim. Você deve ter vivido tempo o suficiente para saber que há uma pessoa certa para cada um de nós. Espero que encontre a sua, de coração.
Ele sorriu (uma poeira de felicidade num mar de desespero), e disse, docemente: -Vou me esforçar.
-Promete pra mim que não vai fazer nenhuma besteira?
-Juro pela minha alma. E por você.
Alyson puxou os leques que Francis havia dado do cinto que os prendia e estendeu-os para ele.
-Fique com eles... Para se lembrar que em algum lugar do Mundo Real existe alguém que gosta muito de você.
Ela o abraçou bem forte. -Se cuida.
-Você também.
E os dois se separaram, para nunca mais se encontrarem novamente. Pelo menos, era o que ela achava. Alyson subiu no hidroavião, e deu um sinal de adeus. A máquina decolou, ganhando o céu estrelado, sem uma nuvem. Francis viu-a sumir da sua vista. Caiu de joelhos no pasto verdejante, e chorou até as lágrimas secarem. Muitos parisienses disseram terem ouvido um falcão cantar até o amanhecer, uma melodia triste que parecia chorosa aos ouvidos mortais. Era muito mais que isso. A ave cantava, para aqueles que podiam ouvir, uma história de amor que nunca havia começado. Cantava a dor de um feiticeiro que, em vários anos de vida, se apaixonara por alguém que nunca poderia ter, e que sofreria a sua falta até o fim dos seus dias.
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-Você está bem?
-Vou ficar. -Respondeu Alyson, entrelaçando sua mão na de Ken.
-Sei como você está se sentindo. Uma vez tive que romper com uma garota...
-Você nunca disse que teve uma namorada. -Ela lembrou.
-Acho que foi porque não era importante. Foi há dois anos, quando viajei para Nova York, se lembra?
-Tenho uma vaga lembrança. Ficou lá por uns três meses, não foi?
-Foi. Eu conheci lá uma garota simpática. Dizia ela que me amava, mas durou pouco tempo para eu perceber que não sentia a mesma coisa. As vezes a gente confunde amor com amizade, e nada de bom sai disso. -Kem pareceu pensativo, e Alyson se perguntou o que estaria passando pela cabeça dele naquele momento. Não perdeu muito tempo pensando nisso.
-E ai, o que você fez?
-Rompi com ela, o mais delicadamente que consegui.
-E?
-Ela tentou se matar.
Alyson sentiu seu ar faltar e apertou mais ainda a mão de Ken. Ele a sacudiu levemente para fazê-la voltar ao normal. Passou a mão livre delicadamente pelo seu rosto. -Hei, hei está tudo bem... Eu cheguei antes que ela pudesse tentar fazer algo consigo mesma.
A falta de ar dela chamou a atenção. Agora Cloe e Sacha estavam olhando para eles, preocupadas. -Está tudo bem ai atrás?
-Está. O Ken só está querendo me matar do coração, nada de mais. -Disse Alyson, sarcástica.
-Eu estou contando a história da minha ex-maluca para ela. -Contrapôs o rapaz.
-Aquela da garota que queria saltar de um prédio de vinte andares por sua causa? A que você contou hoje de manhã? -Questionou Cloe.
-Você sabe? -Perguntou Alyson, de olhos arregalados.
-Todos os três sabem, eu fiz a burrice de ficar contando as minhas amarguras para a Cloe, e esse pessoal que não tem mais nada para fazer parou para escutar. -Reclamou Ken.
-Ele estava carente, tem que dar um desconto né? -Dedurou Cloe, que não perdia a oportunidade de tirar sarro com a cara dele de vez em quando.
-Mas... Um prédio de vinte andares?
-É. Ela tentou mais de dez vezes se matar, ai um belo dia a família internou ela num hospício e avisou que se eu não sumisse de perto dela ia acabar levando um tiro. -Ele completou, dando de ombros.
-Eles iam dar um tiro em você com o quê? -Questionou, rezando para que fosse só uma figura de linguagem.
-Com a espingarda carregada que o pai dela deixava na garagem. -Ele respondeu, fazendo uma cara de “o que eu podia fazer?”. -Me sinto culpado até hoje... Era uma garota tão feliz...
-Ainda bem que não vou ter que me preocupar com uma coisa dessas.
-Quem lhe garante que o romântico francês não vai fazer nenhuma burrice?
-Eu sei que ele não vai. - Ela alegou, decidida.
-Como pode ter tanta certeza?
-Ele prometeu para mim. -Foi a resposta dela. -Se jurasse algo por mim, você quebraria a promessa?
-Jamais.
-Então. Ele não vai fazer nenhuma besteira, tenho certeza que não.
Ele não respondeu. As mãos dele se soltaram das dela, o que causou um olhar torto de protesto. -Devia ter ficado com ele. Eu não sou um santo. Já te fiz chorar. Já fiz você sofrer. Eu menti. Por que não ficou com ele? Francis nasceu em Diamante, sabe onde ficam os portais. Era só pedir, e ele a levaria até ao céu, se fosse possível.
-Está se perguntando por que você é meu namorado?
-É... De certa forma.
-Porque amo você, não ele. Isso te satisfaz? -Ela perguntou, o encarando com seus belos olhos castanho-esverdeados, agora mais verdes do que jamais tinham ficado antes.
Ele entrelaçou novamente sua mão na dela e lhe deu um beijo demorado. -Claro que satisfaz.
Alyson olhou-o por um breve minuto, tentando relembrar algo que tinha escutado há pouco tempo. Do nada ela o fitou e perguntou: -Será que a sua carência hoje de manhã tem alguma coisa a ver comigo?
-Isso é uma pergunta para mim?
-Pode se considerar.
Ele corou um pouquinho antes de responder: -É. Tinha tudo a ver com você.
-Amo você. -Ela disse baixinho, deitando a cabeça no ombro dele. O rapaz passou o braço por trás das costas da jovem e encostou a cabeça na dela. O barulho do motor do hidroavião foi lhe dando sono, e logo ele fechou os olhos e adormeceu. Porém Alyson não conseguiu dormir. Ela pensava como tudo aquilo tinha sido difícil. Como ela queria que Francis não fizesse nenhuma burrice. Como ela queria, simplesmente, esquecer.
T ZT ZT ZT
Mitaray cutucou insistentemente Hiei para que ele abrisse os olhos. O trem parara na estação de Farem, e o jovem ainda dormia a sono solto.
-Qual é? Não se pode nem mais dormir nesse lugar? -O rapaz resmungou, enquanto abria os olhos.
-Chegamos, criatura. Vamos logo, temos que pegar nossas coisas. -Replicou Mitaray. Ele parecia inquieto, o que chamou a atenção do amigo.
-O que está pegando?
-Como?
-Fala sério, Mitaray, te conheço há anos. Acha que não sei reconhecer essa sua cara de apreensão quando a vejo? –Retalhou Hiei, levantando-se de um salto e ficando de pé.
-As linhas de comunicação estão cortadas. E pelo visto não é só aqui. Estão dizendo que o reino inteiro está sem comunicação.
-Fala sério, não se pode cortar uma linha de comunicação, principalmente porque ela é feita de som, não de matéria.
Mitaray o observou por alguns instantes, incrédulo.
-Que é? Eu freqüentei a escola, para a sua informação. -Alegou Hiei, aparentemente ofendido pela surpresa do colega.
-Eu não disse nada. –Contestou Mitaray, estreitando os olhos. –Mas acho que você está muito na defensiva.
-E... –Ele se calou imediatamente. -... Ta legal, só cursei até a oitava série. Mas não quer dizer que sou burro.
-Jamais diria uma coisa dessas.
-Não é?
-Não. Eu diria ignorante, talvez até incapaz… Mas burro não.
-Nossa to me sentindo muito melhor. –Retrucou Hiei.
-Vai se acostumando. Agora podemos ir?
O rapaz resmungou alguma coisa e agarrou suas malas, seguindo de perto Mitaray. Os dois saíram do trem. Uma madrugada fria e úmida os recebeu, resto de uma tempestade que, tão inesperadamente como veio, se fora, deixando para trás habitantes preocupados e alarmados. Eles se entreolharam por alguns instantes e, tomando coragem, entraram pelo caminho sinuoso que levava à Sede Black. Mitaray dava umas olhadas por trás dos ombros, sentindo aquela sensação desconfortante de achar que estava sendo observado.
Já Hiei, quase caindo de sono, mal poderia pensar nisso. Talvez só não estivesse batendo nas arvores da trilha por ter um treinamento muito bom, com um mentor melhor ainda. Era seu costume dizer que, para ir a uma missão de campo, era indispensável um meio de transporte. De preferência grande o suficiente para que pudesse dormir dentro dele. Não era especialista em fazer plantão, mas em compensação era um piloto excelente, que apesar de jovem já havia estado em quase todos os lugares de Diamante.
O caminho terminou de frente a uma grande mansão. Era grande como um centro de pesquisas, luxuosa como o mais belo palácio e fortalecida por defesas insuperáveis, mais poderosas que a força de mil exércitos. Era uma verdadeira fortaleza, onde aqueles que eram considerados inimigos pereceram, sem terem tempo nem para pensar no que fazer para escapar.
Mas Hiei e Mitaray não eram inimigos, muito pelo contrário. Apesar de Íris repetir ardorosamente para não se meterem no que não era da conta deles, os dois sempre lhe davam uma mão quando ela mais precisava. Isso criara uma amizade muito forte entre eles e os membros da Equipe Black.
Mitaray tirou os pensamentos infelizes que lhe cobriam a face e tocou a campainha. Uma câmera mais escondida que ficava sobre a porta captou sua imagem, levando-a ao computador central em instantes. Alguns minutos depois, uma mulher morena de belos cabelos castanhos e uma franja desarrumada abria a porta. Sua boca não conseguiu refrear um sorriso: -Rapazes, como é bom ver vocês. –Disse Íris, enquanto abraçava um de cada vez, amigavelmente. –Vamos, entrem logo. Precisam descansar.
O jovem fitou-a com os olhos acinzentados e deixou o rosto iluminar-se com um breve sorriso. O sorriso de Mitaray era tido como tranqüilizador, podia acalmar ou deixar alegre quem o presenciasse. Era, contudo, muito raro, e só dirigido a aqueles que realmente tinham sua afeição. Por enquanto não eram muitos. A vida de guerreiro era muito difícil, cercada de traições, sangue, carne despedaçada e feridas incuráveis. Como uma pessoa tão gentil podia sobreviver assim?
Dou-lhe a receita: 1˚, arranje um amigo muito doido e que fale bastante besteira, de preferência COM SENSO DE LIMITE. 2˚, evite chamar atenção. A fama é muito ruim quando tem milhares de monstros querendo despedaçar você. E, para não correrem o risco de irem parar no cemitério, muitos ainda preferem o anonimato. 3˚, e mais importante... Situações extremas pedem medidas desesperadas. Portanto, se você bater no cara até cansar e ele continuar inteiro, querendo matar você, não pense duas vezes: CORRA!
Eles entraram na grande casa, e foram recebidos por Dave. Ele era o grandalhão da Equipe. Tinha músculos de ferro, tão definidos e grandes que uma bicha (sem preconceito, ta?), ou cairia a seus pés, ou correria assustada. Era bonito, tendo pele morena e grandes olhos verdes. Os cabelos eram curtos, às vezes revoltosos, às vezes comportados (a base de muito gel). Tinha um senso de humor marcante e uma sinceridade sem igual. Devia ter uns 28 ou 29 anos, mas parecia muito mais jovem. Adorava os seus amigos mais que tudo. Era casado com Taylor. E, acima de tudo, amava a natureza, apesar de não parecer.
Já a sua esposa tinha 28 anos. Ela tinha uma pele avermelhada, cabelos tão lisos que parecia impossível e olhos cor-de-mel, amendoados, quase inocentes. Devia, de algum jeito, ter vindo do Mundo Real. Era descendente de índios. Seu passado não era muito conhecido, o que nem assim impediu o casamento com Dave, ou a amizade para com os outros. O único vestígio dele era carregado junto a ela sempre: uma cicatriz feia, bem abaixo do ombro, que podia ser vista toda vez que a mulher usava camiseta. Era alta, medindo mais ou menos um metro e setenta e cinco. Inteligente, tranqüila e séria, era a mais centrada, porém às vezes deixava sua obsessão por tentar fazer tudo dar certo atrapalhar seu dia-a-dia, e seus relacionamentos.
Devia estar num desses dias de desanimo e muito trabalho, pois passou direto por Mitaray e Hiei e se jogou no sofá. Seus olhos sonolentos passaram pela sala, reparando finalmente nos dois visitantes. Os três se entreolharam. Por fim ela conseguiu esboçar um sorriso, e falar baixinho, rouca: -Oi, pessoal. Desculpa, não vi vocês aí.
-Ela pegou uma gripe forte... –murmurou Íris baixinho, perto dos dois.
-Percebe-se. –Respondeu Hiei de volta, sem ousar levantar a voz. Se existiam duas pessoas que davam medo naquela equipe era Taylor e Íris. Não, dessa vez o grande Dave não estava envolvido. O que ele tinha de músculos, tinha em proporção igual de gentileza e bom-humor. No caso das mulheres, a 1˚ virava uma fera quando estava de mau humor, ou quando algo saía errado. A 2˚ era a líder, e tornando a lembrar, não era bom se meter com ela.
-Vocês vão se candidatar? –Questionou a mulher, numa voz cansada. Iris lançou um olhar vago para os dois, enquanto Dave revelava-se contente demais para quem não sabia de nada...
-Dave! –A líder alegou, sem se alterar.
-Juro que desta vez sou inocente! –Defendeu-se ele.
-Mas você sabia.
-É... Pois é...
-Não foi ele que nos convidou a participar, Iris. –Disse Mitaray, abrindo um sorriso gentil para o velho amigo.
Iris e Taylor se entreolharam: -Não?
-Não.
Impossível. Era o tipo de coisa que Dave faria, embora não fosse nenhum crime. Sua espontaneidade sempre causara problemas. Mas se não fora ele...
-Quem...? –Iris começou, por puro impulso. No fundo, um nome e um rosto já pairavam em seu subconsciente. –Da...-Ela foi interrompida no começo do nome quando uma jovem de 17 anos entrou na sala e, como o vento, foi para perto dos dois visitantes. Tinha cabelos ruivos e cacheados, olhos da cor do pôr-do-sol e perspicazes, tez pálida. Era baixinha e magra, mas uma incrível energia emanava de seu corpo aparentemente frágil. Uma energia que encheu o salão imediatamente após sua chegada. Estranhamente, sua alegria absurda e fora do comum era muito bem-vinda.
Ela deu um beijo em cada um e exclamou, numa voz aguda e alta que fez com que os outros se encolhessem: -Vocês vieram! Pensei que não viriam... Afinal de contas, você cumpre o que diz, Hiei...
Mitaray disse com o olhar algo como “que história é essa?” Ou talvez “eu sabia que tinha algo por trás dessa história toda”. Mas lembrou-se que Dayana só se intrometia nesse tipo de coisa quando o problema era sério. A confirmação viera com a tempestade inesperada e com os cortes nas linhas de comunicação. De modo que apenas sorriu para a jovem na sua frente.
-Dayana. Eu devia ter suspeitado. –Ponderou Iris, como quem confessa um erro sem importância. –Diga-me, garota, você é surda ou simplesmente perdeu o juízo? Acho que deixei bem explicitas as ordens de Não DEIXAR A NOTICIA VAZAR... -Ela repreendeu, sem levantar muito a voz. Dayana era uma incontrolável força da natureza quando resolvia fazer alguma coisa. Era a mais nova da equipe e, para Iris, quase uma filha. Por isso que a líder tentava frear seu entusiasmo “catastrófico”. Era a promessa que fizera quatro anos atrás, quando ela fora deixada na sua porta, por ninguém menos que o Senhor do Palácio de Granito, alegando que a pré-adolescente acabara de ficar órfã: a mãe morrera de uma enfermidade cruel, e o pai, em umas das muitas batalhas contra Haradja (este último era amigo de longa data da Equipe).
Neste dia ela jurara não perder a cabeça e criar a filha do seu valoroso amigo. O que não sabia era que ela tinha um problema sério de hiper-atividade. Mas se esforçou, e ali estavam elas. Agora a empolgação exagerada da jovem tinha sido catalisada e desviada para fins mais produtivos: como mandar recados e dobrar decisões já determinadas (principalmente quando se tratava de uma ordem absurda de Nicolas).
Mitaray olhou Iris com as sobrancelhas soerguidas em uma expressão de interrogação: -Vazar?
-É... Não que quiséssemos deixá-los de fora. Mas tentamos fazer as convocações o mais sutilmente possível, para não atrair a atenção de Haradja. –Comentou Taylor.
-Então não estávamos na lista de convocação? –Questionou Hiei, abatido.
-Mas é obvio que estavam! Só que alguém confundiu o banco de dados do computador e não pudemos mandar a mensagem. E quando conseguimos reiniciar, as linhas de comunicação foram cortadas. Foi sorte Dayana ter saído, para falar a verdade, ou então não teríamos conseguido avisá-los a tempo.
Iris não pôde deixar de concordar e lançou um olhar de desculpas para Dayana, que acenou com a cabeça, em sinal de “desculpas aceitas”. Hiei deu um suspiro de alivio, enquanto Mitaray brincava: -Viu, quem mandou ser apressadinho?
O rapaz ignorou-o completamente e questionou: -E por que essa súbita mudança de planos? Quer dizer, geralmente vocês não eram um grupo fechado?
-Nós somos um grupo fechado. –Corrigiu Taylor.
-Então por que mudar? O que fez você chegar a esse ponto, Iris?
Taylor ia dar uma resposta rude quando Iris a interrompeu, fazendo-lhe um sinal de silêncio. –Esfrie a cabeça, Taylor. Posso responder isso. –E virando-se para os dois colegas, explicou: -Temos procurado muito tempo pela salvação de Diamante.
-Sabemos. –Disse Mitaray, sério: -A garota a quem chamam de Kit Black.
-Sabem também que suspeitávamos que estivesse no Mundo Real. E que mandamos vários amigos em seu rastro... Até mesmo, recentemente, o próprio Crós.
Ele balançou a cabeça, afirmativamente. Mas sua expressão mudou quando ouviu a parte de crós, dita depois de um breve intervalo.
-Crós foi para o Mundo Real?
-Já vão se completar dois dias desde a sua partida. Uma mensagem chegou aos Deuses. Ela foi mandada pela Morte. A garota foi encontrada.
-Isso quer dizer que ela...
-Morreu? Sim. Mas, para nossa sorte, ela ainda tinha uma missão para cumprir... Salvar Diamante... E então lhe foi dada uma segunda chance.
-Incrível. –Murmurou Mitaray, atônito. Era muito difícil ele ficar atônito, e Dayana não conseguiu evitar uma risada abafada e sutil ao ver seu belo rosto pasmo. –Quantos anos faz que houve a última ressurreição aqui em Diamante?
-Muitos, e mesmo assim o homem era um feiticeiro poderosíssimo. –Comentou Dave.
-E ela, aparentemente sem nenhuma noção de magia, conseguiu reviver... Sem um arranhão?
-Tecnicamente, Morte garantiu, ela está bem. A chave foi entregue a ela, também. Estranhamente, parece que ela assumiu outra capacidade, quando chegou às mãos da garota...
-Outra capacidade?
-Parece que ela tinha um instinto antigo. Talvez de uma encarnação antecedente, há muitas eras.
-Todos alguma vez fomos animais. –Disse Taylor.
-E, em nossas reencarnações passadas em que vivemos nesse modo primitivo, ouve cinco animais que se destacaram... -Continuou Dayana, vagamente.
-Os cinco primeiros animais a evoluir para a forma humana eram os mais inteligentes e ardilosos que já pisaram no mundo animal. O gato selvagem, o lobo das montanhas, a águia vermelha, a frágil borboleta e o rebelde peixe-voador. Sua inteligência era tão absurda que eles desenvolveram a capacidade de falar, sozinhos, mesmo antes dos Deuses terem sequer pensado em dar este dom a eles. –Mitaray olhou Iris e ela fez um sinal para que continuasse. –Então quando morreram, conseguiram reviver nos corpos mais evoluídos, não da era em que viveram, mas comparados a sua vida anterior. Porém, como a reencarnação não nos permite acessar nossas lembranças de outra vida, foram criados medalhões para que os agora humanos tivessem um jeito para usar suas habilidades de quando eram animais. Os medalhões davam a possibilidade de que a alma habitasse um corpo meio humano, meio animal. Assim o instinto ainda estaria ali, e quando fosse preciso usá-lo para defender outros humanos, poderia ser revivido.
“Eles se tornaram protetores da humanidade, mas, como não tiveram filhos, seus poderes não puderam ser passados hereditariamente. E, quando faleceram defendendo seus semelhantes, não houve ninguém que pudesse assumir seu lugar... Até a próxima vez que voltassem a andar pelo mundo carnal”.–Ele terminou, respirou fundo e perguntou: -Você acha que ela é a reencarnação de um deles?
-Não achamos, temos certeza. –Empolgou-se Dave. –Sabe o que é melhor? Quando eles “vêm”, nunca estão sozinhos. Eles voltam ao mundo de matéria sempre juntos. E, de acordo com a Morte, nossa amiga procurada é a gata selvagem.
-Parece que tiramos a sorte grande. –Mitaray piscou os olhos acinzentados, uma alegria inundando seu peito. Tinham uma chance. Podiam vencer! A vida nunca parecera tão disposta a lhes dar todas as armas. Com Kit ao lado da Equipe Black, Diamante sobreviveria. Todos sobreviveriam.
Aaron e Pandora entraram na grande sala. A primeira coisa que fizeram foi cumprimentar Hiei e Mitaray. A segunda foi dizer em um tom alegre: -Eles estão vindo. Vão chegar bem na hora!
Iris abriu um sorriso breve. Com aqueles dois podia contar. Eram os mais competentes ‘caçadores de informação’ que tinha. Aaron era o engenheiro da equipe. Seus olhos azuis não deixavam passar nenhum detalhe. Os cabelos negros e arrepiados lhe davam um ar mais jovem, embora tivesse 30 anos. Guardava para si um sentimento muito forte com relação à colega que agora estava ao seu lado.
Pandora tinha tudo para ser uma simples mortal ou já estar morta. Seu corpo era escultural, mas nem um pouco forte. Sua habilidade com armas de “curto alcance” era mínima. Além de tudo, ela nascera cega.
Apesar disso, ela era uma das melhores estrategistas da equipe. Seu cérebro trabalhava absurdamente rápido. Seu corpo pequeno lhe permitia sair de quase qualquer enrascada. E, embora não pudesse enxergar, ela sentia com tanta intensidade que podia atirar num alvo a metros de distancia com seu poderoso arco e flechas. Sua audição, tato e olfato funcionavam assustadoramente bem, e com isso ela podia viver e fazer qualquer coisa que alguém que enxergasse podia. Não sentia falta de ver o céu, ou o inimigo, ou as crianças. Só havia uma única coisa que a perturbava em não enxergar. Não poder ver o mar.
Crescera ouvindo histórias sobre como era bonito, misterioso e perigoso. Nascera em Farem mesmo, no litoral, o que explicava sua pele morena. Era filha de um guerreiro habilidoso e marinheiro nato. Era um homem rude, sempre com feições sombrias em sua face enrugada e coberta por feias cicatrizes. Mas amava a filha. E sofreu muito quando ela fora raptada e levada para longe dele. Adoeceu, e não viveu o suficiente para ver a bela filha retornar, salva por um antigo feiticeiro: Crós.
Ela ingressou na equipe logo depois, convidada pelo próprio feiticeiro. Crós não lhe ensinou truques, nem mágicas, nem tampouco curas. Porém, foi o primeiro que acreditou nela. E, graças a ele, Pandora achou o seu lugar, e desenvolveu todos os talentos que, até agora, ninguém vira.
O mar... Como queria poder vê-lo! Mas havia ainda mais uma coisa que ela desejara ver... O rosto do homem que estava ao seu lado naquele momento, explicando qual foi o esquema que usaram para rastrear Crós e a garota no Mundo Real. O homem que a fazia rir com bastante freqüência, que sempre estava lá quando ela mais precisava, que inexplicavelmente se calava todas as vezes que ela falava a palavra ROMANCE ou AMOR, embora soubesse que ele estava olhando para ela, de uma maneira diferente... Especial.
Ela sempre sabia quando Aaron a olhava daquele jeito. Queria poder ver esse olhar. Quando o conheceu, a primeira coisa que perguntou foi algo do tipo “pode me dizer como você é?” Ele sorriu e lhe disse: “olhos azuis, cabelo negro arrepiado”.Foi até modesto. Cores não significavam nada para ela, e ele deve ter realmente percebido isso, pois se apressara em dizer: -Não que seja muito importante.
Pandora virou-se para ele e perguntou: -Você disse cabelos negros?
-Sim. –Respondera ele. –Por quê?
-É a única cor que posso distinguir. É tudo que eu posso ver. Pelo menos vou ter algo para me agarrar... Algo para me servir de exemplo. –Ela parou. Ele não dissera nada. Começara assim... Seus silêncios abruptos e aconchegantes que ele fazia toda vez que se falavam. –Quando perguntei como você é, quis dizer por dentro.
Os olhos de Aaron brilharam, como incendiados por uma centelha de compreensão. Nunca conhecera alguém que pudesse ser tão simples e maravilhosa ao mesmo tempo. Sorriu mais uma vez e respondeu: -Chato pra caramba, inteligente, mas nem tanto... Não penso muito antes de falar, não sou tão corajoso como deveria...
-Esqueceu de algumas coisas.
-O quê?
-Sua sinceridade... Modéstia... Honestidade... E, finalmente, sua gentileza.
Desde então, um passou a prestar atenção no outro mais detalhadamente. E, apesar de nunca terem dito isso um para o outro, a cada dia que passava começavam a se amar um pouco mais...
-E então? Como conseguiram? –Interrogou Taylor.
-Primeiro fizemos o computador canalizar a energia dos portais entre o nosso mundo e o Real. Depois, juntamos a energia gerada pelo comunicador de Crós. Então, usamos um pouco de eletricidade para criar uma ponte entre o computador e o comunicador dele. Conseguimos entrar em contato.
-Sério? –Iris precisou agarrar Dayana pela gola da camiseta, antes que começasse a pular de alegria. A sala já estava carregada de energia suficiente para criar uma bomba nuclear.
-O contato foi rápido, mas Salem disse que ele e os outros já estavam chegando. -Pandora respondeu, se libertando de sua semi-inconsciência. Ela era a única que só chamava Crós pelo segundo nome. Sempre o chamava assim, pois foi o único nome que entendeu quando ele salvou-a dos seqüestradores. Estava tão esgotada que não conseguia fazer perguntas, nem pedir para repetir. Mesmo depois disso, ela insistiu em chamá-lo apenas de Salem. E como ele gostava mais do segundo nome do que do primeiro, aceitou isso de bom grado.
-Os outros...? –Questionou Iris, sem entender.
-Sim, os outros. É uma história meio complicada de se explicar, porque Salem não teve a oportunidade de contar, sabe...
Todos se entreolharam rapidamente.
-E, pessoalmente, creio que estão do nosso lado. –Ela hesitou, e sentiu algo apertar sua mão com força... Conhecia aquele toque. Seu companheiro inseparável tinha ouvido a insegurança em sua voz e afagava a sua mão sutilmente. Esquisito... Ele nunca a tocara assim antes, sem que fosse realmente necessário. O coração disparou. Ela conseguiu se manter controlada e passou a mão pelos cabelos loiros e longos. Os olhos brancos procuravam o rosto que não podiam contemplar, por mais que quisessem. Uma onda de vertigem apoderou-se do seu corpo. O que raios estava acontecendo?
Dois olhos azuis olhavam seu rosto, incrédulos. Vários pares de olhos viraram-se para ela no mesmo instante. –Você está se sentindo bem, Pandora? –Questionou Iris.
-Estou... Eu estou. Só preciso descansar um pouco. -Seu corpo doía como se milhares de flechas tivessem a transpassado. Ela largou a mão de Aaron e se moveu para fora: -Boa noite.
Ela saiu apalpando a parede do corredor, sentindo dor, angustia e medo... Como se estivesse morrendo...
Os colegas observaram a amiga sair da sala preocupados. A líder virou-se para Aaron, perguntando: -O que você fez?
-Nada. –Respondeu ele.
-Tem certeza?
-Absoluta. Ela parou de falar e eu segurei sua mão... Mais nada.
-Vá ver como ela está, Aaron. Parecia muito pálida.
Ele não esperou que ela repetisse... Deu meia volta e entrou no corredor escuro. Seus passos ecoaram no silencio.
-O que ela tem? –Questionou Mitaray, incomodado. Nunca vira Pandora agir assim antes.
-Eu não sei. –Confessou Iris. –Começou a ficar assim há duas semanas. Temo que esteja doente.
-Eu examinei, e não achei absolutamente nada de anormal. –Alegou Taylor, que era quase médica.
-Estranho...
-Bastante. Mas vocês também precisam repousar. A prova amanhã será dura. –Ela virou-se para eles, o rosto se fechando numa careta. –Tem um quarto vago, no segundo andar. Venham, eu mostro para vocês...
Eles subiram as escadas a sua frente e chegaram a um corredor mais iluminado do que o do primeiro andar. Andando calmamente, Iris conduziu-os até o seu final, onde ficava o quarto menor, desocupado a longos 8 anos.
Aaron disparou pelo corredor. Ela não poderia ter feito o percurso inteiro tão rápido, a menos que...
Ele retornou e entrou na primeira porta, a que dava para a sala do computador. Acendeu as luzes. Pandora estava caída no chão, parecendo morta. Correu até ela e se ajoelhou ao seu lado. Já ia gritar por ajuda quando foi interrompido.
-Aaron... Não. Não grite, por favor. Estou escutando gritos demais ultimamente. –Ela murmurou, abrindo os olhos.
-Pandora... –Ele suspirou, aliviado. Um quê de raiva encobriu sua voz quando voltou a falar. –Mas que raios, você quer me matar do coração?
Ela puxou a mão dele enquanto tentava se levantar. –Por quê está tão zangado? –Murmurou, se apoiando na parede com dificuldade.
-Não estou zangado. –Mentiu ele.
-Está sim. Posso ouvir a raiva na sua voz. –Ela tentou dar um passo à frente e se desequilibrou. Ele a tomou nos braços, antes que caísse. Tenso, tentou olhar o rosto dela. Estava realmente muito pálida. Mas isso não a impediu de repetir a pergunta: -Por quê está tão zangado?
-Pensei que estivesse morta.
-Também pensei.
-O quê?
-Ando sentindo coisas estranhas... Ouvindo gritos. Isso não pára nunca. Acho que estou ficando louca.
-Deve estar doente... Mas louca, eu duvido.
-Acho que vou morrer... Em breve.
Ele sentiu uma pontada forte no coração. E se fosse verdade, o que faria? Tentou não pensar muito nisso. –Deixe de dizer sandices. Você vai ficar bem.
-Você não entende... Eu sinto que estou morrendo aos poucos. Sinto flechas invisíveis me perfurando, e a dor... Você não tem idéia do quanto dói.
Aaron arfou baixo. De repente, estava soluçando, lágrimas salgadas escorrendo pela sua face. Ele podia sentir. Não queria acreditar, mas sabia que estava próximo... Ainda abraçado com Pandora, sentiu ela se remexer em seus braços e encontrou os olhos dela. Vazios, sim, é claro, mas toda vez que via aqueles olhos sentia como se ela estivesse mesmo vendo-o.
-Pare de chorar por minha causa. Não gosto de te “ver” assim.
-Você não pode ver.
-Posso sentir. Pare de chorar. Por mim...
-Não posso.
-Por quê?
-Você não entenderia.
-Aaron...
Ele encostou a testa na dela, se controlando o mais que podia. Chega de fingir. Chega de esconder. Engoliu em seco, repetindo para si mesmo a frase que pensara em dizer a mais de 8 anos: -Eu te amo.
O silêncio o cercou. Olhou novamente para baixo, para a frágil garota em seus braços. Ela continuava com os olhos direcionados para o seu rosto. Mas aqueles olhos, geralmente tão doces, agora estavam tristes. Mais um minuto e Pandora também chorava. –Eu também te amo. Não quero deixar você...
Ele fechou os olhos e abaixou a cabeça, procurando os lábios dela. Sentiu sua leveza enquanto ela retribuía o beijo, com urgência. Se soubesse que tinham tão pouco tempo, teria aberto o jogo antes. Aaron a abraçou mais forte, o rosto molhado por lágrimas teimosas, que se recusavam a ficar em seus olhos amedrontados.
Alguém iria arrancar o tempo deles. Arrancaria aquele momento perfeito, ao qual tinham esperado tanto. Mas ele ia lutar! Ia vender caro a sua pele. Seja lá o que fosse que estivesse querendo matar Pandora, teria que lhe enfrentar primeiro.
Mas o que ninguém sabia era que Pandora podia adivinhar o futuro. E que ela não tinha visões, mais sim sentia tudo o que estava por vir. Ouvia tudo... E, a “visão” que tinha, era realmente de sua morte. E que ela se realizaria mais cedo do que poderia imaginar... E que Aaron não estaria lá para chorar por ela, pois também teria partido...
T ZT ZT ZT
Alyson olhou para Crós. Ele balançava o comunicador negro com energia: -Lata velha, porcaria, monte de sucata! Vamos, volte a funcionar!
Balançou a cabeça, como quem diz “eu não estou vendo isso”. Seus olhos buscaram Ken. O rapaz mantinha-se concentrado em pilotar, mas um breve sorriso de escárnio estava desenhado em sua face. Cloe manifestou prontamente a sua opinião, que também passara pela cabeça dele: -Bem vindo à nossa piada particular do Mundo Real... Os aparelhos sem fio estão sempre fora de área.
Crós pensara em atirar o aparelho longe quando lembrou o que Taylor provavelmente diria: “Acha que o dinheiro que vem do Palácio de Granito para financiar nossas ações nasce em árvores?”. Respirou fundo e retrucou: -Eu definitivamente odeio esse lugar.
-Tá, não precisa exagerar. Não é tão ruim assim. –Alegou Alyson, remexendo na mochila que trouxera, procurando o aparelho de MP3 que tinha jogado lá dentro no dia anterior.
-Deixe de ser hipócrita, você não gosta desse mundo mais que eu. –Protestou ele.
Ela parou para pensar um instante e respondeu: -Verdade. Eu definitivamente detesto toda a corrupção, violência e falta de amor-próprio que enche este mundo hipócrita. Mas eu nunca conheci um lugar melhor... Antes um mundo perdido e caindo aos pedaços do que nada.
-Não culpe o mundo em si. Culpe os próprios humanos que fizeram isto com ele. –Alegou o feiticeiro, solenemente.
–Pensei que você estivesse fazendo exatamente isso...
–Pensou errado.
Ela desistiu de discutir e deu de ombros. A voz suave de Kem chegou nos seus ouvidos.
–Se serve de consolo para vocês dois, também abomino esse mundo criado por seres humanos hipócritas.
–Tá aí uma coisa que eu não esperava ouvir. –Falou Cloe.
–Se tivesse tido uma vida igual a minha, aposto que concordaria comigo.
–Não precisa ser grosso... Eu entendo o seu lado. O que eu disse sobre falar antes de pensar?
-Desculpe.
-Pessoal, vamos tentar acalmar os ânimos, ok? –Pediu Alyson, completando animadamente: –Achei!
-O que? –quis saber kem.
-O aparelho de MP3 que estou procurando há uma hora. –Ela disse calmamente, enquanto sentava novamente e colocava os fones de ouvido.
-Não vai dormir?
-Estou muito agitada para isso. Você não?
-É, bastante. –Ken piscou os olhos, cansado.
-Por que não diz logo “não”?
-Porque não quero parecer indiferente e muito menos ferir seus sentimentos.
-Esse cuidado todo está começando a me assustar... -Ela comentou, fitando as costas dele, enquanto trocava de lugar com Crós, assim como na noite anterior. Ele recostou-se na cadeira do co-piloto e virou a cabeça para olhá-la.
-Nunca mais vou discutir com você.
-Quando o fizer, saberei que voltou ao seu normal.
Ele riu levemente, mas não respondeu.
Sáb Dez 26, 2015 8:30 pm por Mackenzie A. Irvine
» {Descrição} Sacerdotes e Sacerdotisas
Sáb Dez 26, 2015 8:26 pm por Mackenzie A. Irvine
» Membros da Casa da Vida
Sex Dez 25, 2015 10:10 am por Mackenzie A. Irvine
» {Descrição} FTCS
Sex Dez 25, 2015 10:09 am por Mackenzie A. Irvine
» {Descrição} Transmorfos
Sex Dez 25, 2015 10:01 am por Mackenzie A. Irvine
» {Descrição} Oráculos
Sex Dez 25, 2015 9:55 am por Mackenzie A. Irvine
» [FP]-Alex Mikaelson
Qui Nov 27, 2014 6:43 pm por Convidado
» [FP] Srta. Annie Voguel
Sex Nov 21, 2014 12:05 pm por Convidado
» [FP] Jessica Hans
Dom Out 05, 2014 11:09 pm por Convidado